TURMA DO PETRÓLEO

TURMA DO PETRÓLEO

sábado, 28 de fevereiro de 2015

Petróleo ainda que tarde!

Por Vladimir Sacchetta

Visionário e empreendedor, criador da nossa melhor literatura infanto-juvenil e fundador da indústria editorial brasileira. Autêntico intelectual militante, Monteiro Lobato (1882-1948) defendia o binômio prosperidade e distribuição de riqueza num projeto de nação que previa um povo soberano em pleno exercício da cidadania. Idéias que o acompanhavam desde os tempos de estudante de Direito no Largo São Francisco, tornaram-se ainda mais sólidas após uma estada como adido comercial em Nova York, entre 1927 e o início de 1931.
Nas searas de Tio Sam, fascinado pela pujança econômica e pelos ícones do progresso, visitou Detroit, com sua indústria automobilística liderada por Henry Ford. Percorreu bibliotecas públicas, andou de metrô, deixando-se encantar pelo jazz, cinema falado e por desenhos animados, cujos personagens, como o Gato Félix, incorporaria mais tarde às suas histórias. De volta ao Brasil, logo após a Revolução de 30, buscou levar adiante planos que colocariam sua terra natal nos trilhos da modernidade. Vislumbrando as bases do desenvolvimento no tripé representado por ferro, petróleo e transportes, tentou implantar uma indústria siderúrgica ao mesmo tempo em que fundou empresas de prospecção: seu negócio era transformar as pedras em ferro, converter o ferro em máquinas e extrair da terra o petróleo que move as máquinas.

Desenvolver nossa indústria petrolífera e colher dela todos os lucros. Esta era a receita de Monteiro Lobato, para tornar o Brasil um grande produtor de matéria-prima combustível e, mais do que isso, convertê-lo num dos maiores fornecedores mundiais. "Nesse dia, enriquecidos e poderosos, havemos de sorrir com piedade dos tempos de hoje, deste miserável hoje em que vivemos dum cafezinho vendido lá fora, dum algodãozinho, duns couros de cabrito, dumas piaçavas e outras quireras de índios", sonhava em voz alta, em mais uma das palestras da sua célebre campanha do petróleo. Com o entusiasmo que sempre foi marca da sua personalidade, apesar de avesso a discursos e conferências, Lobato percorreu o país com o objetivo de convencer o público da existência e possibilidade de exploração do combustível nacional. "Mas por que essa fúria pelo petróleo? Ambição? Loucura? Monomania?", perguntava em 1937 a um auditório lotado em Uberaba: "Nada disso. Apenas dó da minha terra. Um dó que nasceu em conseqüência de uns anos que passei nos Estados Unidos". (...)

Para o criador do Sítio do Picapau Amarelo, o raciocínio era simples. Assim como eles, americanos, também fomos colônia por alguns séculos. Estávamos localizados em um único continente e, a exemplo deles, possuíamos vasto território com os mesmos elementos humanos que entraram na sua composição étnica, forjada por europeus, índios e negros. As riquezas naturais de ambos se equivaliam, assim como as formas de governo. Com tantos pontos em comum, por que um acabou tornando-se uma verdadeira potência enquanto o outro, condenado à pobreza, sobrecarregado de dívidas, tinha 70% da população mergulhada em completo analfabetismo?

Sem se dar conta do passado histórico que fez drenar boa parte da vitalidade e das riquezas da América Latina, Lobato acreditava que o segredo dos Estados Unidos vinha do subsolo. "A superfície apenas permite a subsistência. O enriquecimento vem de baixo. Vem das substâncias minerais", dizia, inflamado com a perspectiva de que, uma vez mobilizadas essas fontes naturais, poderíamos "ferrar" o Brasil inteiro e o mundo. Mas se continuássemos de cócoras, como o Jeca Tatu, fatalmente mudaríamos de dono. "Surge pois o dilema: ou continuamos deitados no berço esplêndido e gente nova vem tomar conta disto ou, postos de pé, estaremos habilitados a arreganhar os dentes."

Petroleum quod serum tamen


"Um dia", escreveu Lobato, "o coronel Drake fura a terra na Pensilvânia e faz jorrar um líquido negro chamado petróleo. O mundo vai mudar." Ocorrida em 1857, aquela descoberta ia alterar definitivamente a correlação de forças no planeta. A Inglaterra perdia a posição hegemônica baseada no carvão, enquanto os Estados Unidos construíam sua supremacia. Disposto a seguir o exemplo dos americanos, Monteiro Lobato resolveu apostar no petróleo. Na sua visão, porém, a democracia era o pressuposto da independência econômica, que se viabilizaria por meio de uma sólida estrutura industrial. Ele, que já tentara a siderurgia, agora se lançava em busca do ouro negro. "Quem olha para o mapa da América vê logo que a América é o grande continente do petróleo, de norte a sul, desde o Alasca até a Patagônia. E vê que praticamente todos os países da América já tiraram petróleo, menos o Brasil, que é o colosso em território que sabemos. (...) Só o Brasil persiste na sua bobagem de duvidar. E, no entanto, não existe no mundo país mais rico que o nosso em sinais superficiais de petróleo."

Descartando eventuais parcerias com o governo, ele se dirigiu diretamente ao público. "Compreendi ser o petróleo a grande coisa, a coisa máxima para o Brasil, a única força com elementos capazes de arrancar o gigante do hino de seu berço de ufanias", disse ele, em uma de suas conferências em Belo Horizonte onde, apelando para a emoção, invocou o lema dos Inconfidentes: "O nosso sonho de hoje é a independência econômica, e a nossa divisa, Petroleum quod serum
tamen - petróleo ainda que tarde".
Seu empenho dá bons resultados. Em carta de 27 de dezembro de 1931 a Manuel Carneiro Muniz, seu antigo auxiliar no consulado de Nova York, Lobato anuncia o lançamento da Companhia Petróleos do Brasil, cuja subscrição alcançara, nos primeiros quatro dias, quase metade das ações. (...)
Empolgado com a receptividade, que facilitava a captação de recursos para seus empreendimentos, no início do ano seguinte escreveu a Lino Moreira, amigo desde os tempos da juventude, com quem compartilhava a nova aventura. "Em 12 dias úteis reuniu o capital necessário e hoje, sem um mês ainda de idade, ninguém larga ação pelo mesmo preço que a pagou." E avisava que ia partir para a segunda etapa, com a incorporação da Companhia Petróleo Nacional, e realizar perfurações em Alagoas, segundo ele o ponto onde talvez existisse petróleo em maior quantidade e melhor condição estratégica para a exportação. A Anísio Teixeira, aluno de mestrado da Universidade de Columbia e adversário de xadrez nos domingos nova-iorquinos, contaria, ainda em 1932, que seus planos iam às mil maravilhas:

"A vitória está assegurada e, a não ser que me veja espoliado por leis do Juarez [Távora], nacionalizadoras do petróleo, que venham matar o surto da futura indústria e privar-me do que com ela eu possa vir a ganhar, terei meios de realizar várias grandes coisas que me fervem na cabeça". Uma delas consistia em tirar o Brasil do atraso secular e torná-lo competitivo e atuante no mercado internacional. "Mais sabão ou mais açúcar não influencia em nada a vida do país; enriquecerá uns tantos homens apenas. Mas petróleo, petróleo a jorrar de mil poços, gasolina a 200 réis, óleo combustível a 100 réis, influencia e tremendamente, pois equivale à maior das revoluções econômicas e ao começo do Brasil de amanhã - sadio, forte, poderoso." (...)

Aos que chegavam a seu escritório, Lobato não escondia a alegria. Mostrava um frasco com óleo esverdeado, dizendo: "Cheire isso aí. É petróleo bruto. Petróleo brasileiro. Uma gota do oceano de petróleo que dorme em nosso subsolo e há de jorrar um dia, para inundar de riqueza todo o Brasil!". Em seguida, tomava uma folha de papel, embebia no líquido e botava fogo. "Veja a fumaceira que faz. Sinta bem esse cheiro. Cheiro de petróleo! Petróleo arrancado à terra brasileira!"

Para reforçar suas idéias, em junho de 1935 fez lançar, pela Companhia Editora Nacional, A luta pelo petróleo. Na obra de Essad Bey, traduzida por Charlie Frankie, colaborador de Lobato em levantamentos geofísicos e prospecções, ele assinava a revisão e escreveu um prefácio denunciando a ineficiência do Serviço Geológico, órgão oficial encarregado das pesquisas, a quem acusava de encampar a política dos trustes internacionais: "Não tirar petróleo e não deixar que ninguém o tire".

Apesar do entusiasmo de Lobato, Araquá não ia bem. As brocas de perfuração foram sendo moídas por uma enorme camada de basalto. Ao invés de petróleo, jorrou apenas água sulfurosa. Em março de 1938, o escritor envia uma carta a Getúlio Vargas, no momento em que o ditador se preparava para assinar novas diretrizes para a exploração das riquezas minerais. Nela, Lobato reiterava que o Código de Minas, tornando sem efeito os registros de jazidas efetuados de acordo com as regras anteriores - e sobre cujas bases se haviam erguido os negócios nacionais do setor -, abalaria a estrutura desses empreendimentos. Mas, apesar disso, abriu mais uma frente de prospecção, agora em Porto Esperança, Mato Grosso, e prosseguiu disparando missivas desassombradas tanto para Vargas quanto para o general Horta Barbosa, presidente do Conselho Nacional do Petróleo.

O enfrentamento com a cúpula do Estado Novo culminou na sua detenção no início de 1941 e, mais tarde, na liquidação das companhias que havia fundado. "Depois que me vi condenado a seis meses de prisão, e posto numa cadeia de assassinos e ladrões só porque teimei demais em dar petróleo à minha terra, morri um bom pedaço na alma", confessaria a Godofredo Rangel nesse mesmo ano.

Com a redemocratização em 1945, que permitiu a reorganização da sociedade civil e o ressurgimento dos movimentos populares, o tema petróleo voltou à ordem do dia. A retomada dos investimentos no pós-guerra reacendeu os debates em torno da questão energética. O petróleo mobilizou a opinião pública e suscitou polêmica. Técnicos, empresários, militares, estudantes e trabalhadores, além dos parlamentares que deveriam votar o Estatuto do Petróleo no Congresso, dividiam-se em duas correntes. De um lado estavam os nacionalistas, que defendiam a presença do Estado na infra-estrutura e na indústria pesada. Do outro, os chamados entreguistas, com respaldo das Sete Irmãs, o cartel que reunia as maiores empresas mundiais do petróleo, que advogavam a entrada do capital estrangeiro no setor.

Curioso é que, desta vez, o mesmo Horta Barbosa, responsável por colocar Lobato atrás das grades do Presídio Tiradentes, apropriou-se das suas idéias e passou a defendê-las em palestras em prol da soberania nacional. Com apoio da União Nacional dos Estudantes, foi fundado o Centro de Estudos e Defesa do Petróleo, que levantou a bandeira de "O Petróleo é Nosso". A intensa participação popular fez cair o projeto de Estatuto do Petróleo, favorável à ação irrestrita das multinacionais. E, em 3 de outubro de 1953, cinco anos após a morte do escritor, Getúlio Vargas sancionou a Lei 2004, criando a Petrobras.

Monteiro Lobato só conseguiu fazer jorrar o óleo negro na torre Caraminguá I, plantada no imaginário de O Poço do Visconde, livro de 1937. Acabaria não presenciando o nascimento de uma grande empresa brasileira, competente e rentável. Uma estatal em tudo diversa da burocracia e da ineficiência que Lobato identificava em tantos órgãos públicos do seu tempo. Maior do país e entre as mais importantes do mundo no setor, a Petrobras torna realidade, no seu cinqüentenário, os sonhos de um escritor-cidadão que um dia ousou acreditar na nossa auto-suficiência em matéria-prima combustível.
(A ÍNTEGRA DESTE TEXTO FOI PUBLICADA NA REVISTA SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL, EDIÇÃO ESPECIAL SOBRE OS 50 ANOS DA PETROBRAS, DEZEMBRO DE 2003)
VLADIMIR SACCHETTA, jornalista e produtor cultural, escreveu, em co-autoria, Monteiro Lobato: Furacão na Botocúndia, Ed. Senac, ganhador dos Prêmios Jabuti e Livro do Ano de 1998. É o diretor de conteúdos deste sítio.

Nenhum comentário:

Postar um comentário